quarta-feira, 22 de junho de 2005

Elogio Fúnebre à falecida Onix

Doridos e doridas, autoridades civis e religiosas, invejosos e invejosas, todos os presentes, minhas senhoras e meus senhoras.

Cabe-me, apesar de bisonha, a sorumbática tarefa de, em breves momentos, situar e levar à reflexão mais profunda a relação que todos nós tivemos durante largos anos com a defunta, que inesperadamente pelo seu descabido e imerecido desaparecimento, hoje aqui nos congrega de forma penosa e trágica, para uma última despedida.

Trazendo à memória alguns dos seus mais marcantes momentos de existência, prestarmos-lhe a ela, que era uma das maiores dignitárias que a nação lusa poderá ter em qualquer época, uma justa e piíssima homenagem, preito da consagração, tributo e veneração que a dignidade e a decência exigem num tempo onde o esquecimento fere mortalmente a nobreza e decoro das existências que se cruzam com as nossas vidas.

Desta forma a nossa voz se levanta, apesar da comoção que habita o mais profundo do nosso ser, pois não se pode ficar calado perante a infâmia e calamidade que ensanguentam a alma daqueles que obtiveram o mais precioso dom que foi a convivência amiga e preciosa daquela que hoje recordamos, a “desejada das linhagens” a “amantíssima da parentela orgaz de quem mergulha nas profundidades da vida”.

Concidadãos e patrícios de uma nação agora mais pobre e pauperrimamente atingida por este desaparecimento que provoca a ira dos vastos céus de Junho, levando-os, como os nossos olhos já testemunharam, ao pranto e à lamentação taciturna: Ergamo-nos, apesar de cabisbaixo o nosso olhar; ergamo-nos, mesmo que a nossa tez sóbria anuncie o desfalecimento provocado pelo tumulto e comoção que estamos a viver.

Claro que nenhum obituário pode ser perfeito para a classificar, e disso temos plena consciência. Sendo assim, e reconhecendo essa limitação, atrevo-me, numa missiva bastante generalista, a fazer uma sinopse daquela a quem hoje prestamos estima e gratidão por ter sido fiel companheira, amiga, camarada, amásia, comborça, colega, confrade, sócia, irmã, parceira, filiada, adepta, simpatizante, condiscípula, apoiante, partidária desta palhaçada que tantas vezes é a vida.

Ela podia ser apreciada o mês inteiro, com a mesma intensidade, sem descrenças, ou sem o apaziguamento necessário em outras relações que possuímos.
Se ela manchava a nossa roupa, a nódoa era facilmente lavável.
Ela tinha sempre uma espera paciente. Nunca nos aborrecia, apresentando-se quando era preciso e disponibilizando-se como reutilizável.
Ela nunca se atrasava.
Ela nunca exigiu que lhe comprássemos flores.
Ela nunca se importou que, mesmo ao lado dela, pudesse fazer um piropo a outra.
Ela jamais nos pressionou com discursos dúbios sobre compromisso, fidelidade ou casamento quando a deixávamos. Nem nunca nos ameaçou com suicídio ou com uma gravidez inesperada.
Ela nunca ficou ciumenta, mesmo naquelas alturas em desejávamos outra.
Ela sempre soube ouvir atentamente as nossas confidências e mesmo os nossos disparates sem nada responder.
Ela sempre foi mais barata que outras que andam por aí.
Ela nunca nos apresentou a sua mãe.
Inesperadamente, depois ter termos passado a noite toda com ela, nunca quis nada em troca, e de manhã estava disponível para nós, não memória que tenha tido sequer uma “dor de cabeça” que a impedisse de cumprir com os seus mesteres e compromissos.
Nós podíamos dividi-la com os amigos.
Com ela nos sabíamos sempre quem a tinha aberto primeiro.
Ela jamais reclamou por igualdade.
Ela nunca nos abandonou nem por um homem, nem por uma mulher.
Ela podia ser apreciada em público.
Ela nunca reclamou, nem quando íamos embora, nem às horas que chegávamos.
Ela, contrariamente às outras, era das tais que gelada se apresentava como muito boa.
Ela nunca precisou de ser lavada antes de experimentada.

Morreu em paz, sem uma queixa, silenciosa e sofrida.

Eis a dolorosa exactidão do momento presente. Inutilmente, agarrados ao seu quase cadáver, tentamos salvá-la com um derradeiro boca-a-boca. Definhou, apesar de todos os esforços na flor da idade, ao abandono, com poucos à cabeceira do seu derradeiro instante.

Extinguiu-se em paz, sem um lamento, muda e resignada.

Ela travou uma luta desigual até ao fim. Depois, conformada com o seu destino, e persuadida de que tudo era inútil, preparou-se para morrer, com elegância, nobremente. O pano de veludo correu, limpando o timbre do fundo da garrafa deixada em cima do tampo envidraçado. As canecas calaram a surdina da última adaptação. E devagarinho, sem um grito, sem um desespero, desfez-se em sombra, morreu, nova e triste,...

Ora em diante, mesmo a maior alegria não será nunca tão grande por mais amigos que reunamos a alomorfia é irreversível. Faltará sempre um bocadinho assim… Mesmo enquanto num qualquer acto de degustação com propósitos pouco claros de resgatar o tão amado e nostálgico paladar, não será mais do que um sonho que sempre nos foge como uma efialta que nos deixará para sempre num marasmo, numa espécie de letargo sem fim.

Porra pra isto...!!!

E se algum dia o restabelecimento for possível, não será sem uma convalescença agreste onde só os mais fortes e audazes terão sucesso. Amiguemo-nos mais ainda caros condiscípulos e consortes pois a peleja em partenariado será, certamente, menos ingrata. E, se a nossa maior concubina nos desampara e despreza agora, convém-nos reflectir se não seremos também culpados de tão amargurada abalada.

Minhas senhoras e meus senhores…

“Paz à sua alma.”






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