terça-feira, 11 de maio de 2004

Da loucura roubada pelos Sábios

Os loucos abrem os caminhos que depois emprestam aos sensatos. [Carlo Dossi]

Ah, loucura! Que nostalgia, que droga viciante a de Ser isento da, insensível à, representação que os demais detêm de mim.
São meus os gritos de guerra contra o vácuo invisível e contra a massa inerte.
E tantas vezes me bato em titânicas lutas que o efeito produzido é a anestesia e me perco sem saber onde me encontro. No vazio invisível? Na massa inerte? Ou num qualquer limbo intermédio? Ou não?...

Quero ser louco, não (apenas) porque me seduz ou porque estou viciado na loucura, mas porque escolho ser e escolho-o na harmonia da eterna e ilimitada possibilidade de Ser o que quero Ser na vontade de cada dia sempre programada na eventualidade de não uma mas várias vidas.

Mas escolha consciente pela loucura é a própria negação dela. O paradoxo do actuar inconscientemente consciente.

Se a loucura pode ser entendida como inconsciência, quero ser loucamente consciente. Consciente de todas as possibilidades mas mais ainda que a possibilidade do estar onde estou, do ser quem sou, é resultante de uma escolha consciente - minha.

Porque nos construímos em relações de afectividade e aprendisagem, apreendemos, portanto, aquilo que nos rodeia. Não nego a possibilidade (até a quase certeza) de o processo ser inconsciente mas luto, insurjo-me e defendo a minha possibilidade de escolha de Ser. Não me nego a mim mesmo mas se não me posso construir, posso escolher quem e o que me constrói e, mais ainda, posso escolher não Ser o que sou agora.

Uma loucura que, por existir na dualidade do ser e do existir, é-o na dualidade do pensar e do sentir.
Se até hoje nunca escolhi ser quem agora sou, pelo menos agora posso escolher se quero continuar a ser quem sou hoje.

Inconsciente é não ter conhecimento da hipótese de escolha e, portanto, não saber que a pode fazer (a escolha) - a bela mas cara ignorância; e ela acaba por formar-se por força das circunstâncias, da casualidade e da impaciência da progressão, aparentemente linear, do tempo.

Conscientemente inconsciente é ter conhecimento da hipótese de escolha mas não a tomar - a opção pela alienação mental, coisa repugnante; e ela acaba por formar-se por força das circunstâncias, da casualidade e da impaciência da progressão, aparentemente linear, do tempo.

Consciente é ter conhecimento da hipótese de escolha mas persegui-la insistentemente - uma obsessão mais paralisante que actuante, coisa deprimente; e ela acaba por formar-se por força das circunstâncias, da casualidade e da impaciência da progressão, aparentemente linear, do tempo.

Inconscientemente consciente é ter conhecimento da hipótese de escolha mas saber que o sou eu que opto mesmo que só em retrospectiva. Pretendo a loucura que me coloca em perturbação mental (daí a inconsciência), permanente ou passageira, na qual se regista não a anulação da personalidade individual mas a construção dela (daí a consciência); e ela (a escolha) acaba por formar-se por força do ser aliada à manipulação das circunstâncias, da casualidade e da impaciência da progressão, aparentemente linear, do tempo.

Correr o risco da loucura é, como diz Dossi, preparar caminhos de futuro mas numa liberdade responsável. É admitir que o impossível é uma possibilidade limitada que só existe porque ninguém descobriu quais os seus limites.

Se antes havia menos acesso a recursos, se havia menos possibilidades e menos tempo livre, então porque me deixo constantemente recair na ridícula auto-comiseração do "antes é que era bom"? Posso continuar a acreditar que se fazia mais e melhor mas como posso acreditar que isso se deve unicamente às circunstâncias de antes se eu próprio as vejo como sendo melhores agora?
Não posso!
Como é duro apontar o dedo a mim mesmo, como é redundante e nada original o meu mea culpa!
Pior: como é banal o papel de vítima de mim mesmo e mais banal ainda o das circunstâncias.

A experiência não é aquilo que nos acontece. É o que fazemos com aquilo que nos acontece. [Aldous Huxley]

Eu sou aquilo que me acontece, sou o que faço com aquilo que me acontece.
Eu não posso ser aquilo que me acontece. Recuso-me veementemente!
E que morra se me nego! Pois vivo já não estaria apenas existiria!

Quero o Ipiranga da pobreza de espírito mas não círculo vicioso que rendunda no eco fossilizado e que apenas tem o (des)mérito de deixar a massa inconsciente perplexa e, ou, chocada(Antônio dos Santos: O Grito do Ipiranga: um Grito sem Eco?).

Assim deve ser convosco; mantenham-se loucos, mas comportem-se como pessoas normais. Corram o risco de ser diferentes - mas aprendam a fazê-lo sem chamar a atenção. Concentrem-se nesta flor e deixem que o verdadeiro Eu se manifeste. Veronika Decide Morrer [Paulo Coelho]

Aprender a fazê-lo, usando palavras emprestadas, recorrendo à delicada arte de não se fazer notar, aliada ao cuidado subtil de se deixar distinguir. (Paul Ambroise Valery).

A massa nunca gostou (nem gosta) de ser confrontada directamente mas sempre se deixou fascinar pela diferença e, sobretudo, pela diferença dos loucos, embora muitas vezes negando-a, repudiando-a.

Bem haja,

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